Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos

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Alexandre Morais da Rosa

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31/08/2009

Cientistas mostram ser possível forjar evidências de DNA



Para pensar...
















‘É muito mais fácil plantar DNA do que impressões digitais’, diz especialista.
Celebridades também já podem temer ‘paparazzi genéticos’.

Andrew PollackDo ‘New York Times’

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    Você pode simplesmente projetar uma cena de crime"

Cientistas em Israel demonstraram que é possível fabricar provas de DNA, minando a credibilidade do que foi considerado o mais alto padrão de evidência em casos criminais.

 

Os cientistas fabricaram amostras de sangue e saliva contendo DNA de uma pessoa diferente do doador. Eles também mostraram que, se tivessem acesso a um perfil de DNA num banco de dados, poderiam construir uma amostra de DNA para combiná-la a esse perfil sem obter qualquer tecido da pessoa.

 

“Você pode simplesmente projetar uma cena de crime”, disse Dan Frumkin, principal autor do trabalho, publicado online pelo jornal “Forensic Science International: Genetics”. “Qualquer estudante de biologia poderia fazer isso.”

 

Frumkin é um dos fundadores da Nucleix, empresa baseada em Tel Aviv responsável pelo desenvolvimento de um exame capaz de distinguir amostras de DNA falsas e verdadeiras – e espera vendê-lo a laboratórios forenses.

 

A possibilidade de plantar evidências de DNA numa cena de crime é apenas uma das implicações da descoberta. Outra seria uma potencial invasão de privacidade.

 

  • Aspas

    Imagino que o criminoso comum não seria capaz de fazer algo assim"

Usando algumas das mesmas técnicas, pode ser possível obter o DNA de qualquer um, de um copo descartável ou filtro de cigarro, e transformá-lo numa amostra de saliva – que poderia ser submetida a uma empresa de exames genéticos, e usada para medir ancestralidade ou o risco de contrair várias doenças. Celebridades podem passar a temer “paparazzi genéticos”, disse Gail Javitt, do Genetics and Public Policy Center, na Universidade Johns Hopkins.

 

Tânia Simoncelli, conselheira científica da União Americana de Liberdades Civis, disse que a descoberta é preocupante. “Numa cena de crime, é muito mais fácil plantar DNA do que impressões digitais”, explicou. “Estamos criando um sistema de justiça criminal cada vez mais dependente dessa tecnologia”.

 

John Butler, líder do projeto de testes de identidade humana no Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos EUA, afirmou estar “impressionado com o quão bem eles eram capazes de fabricar os perfis falsos de DNA”. Ele acrescentou uma ressalva (não muito tranquilizadora): “Imagino que o criminoso comum não seria capaz de fazer algo assim.”


27/08/2009

A publicidade no processo penal e a democracia capitalista: um binômio problemático! Bernardo Montalvão



 Li, gostei, compartilhei. Alexandre

A publicidade no processo penal e a democracia capitalista: um binômio problemático!

 

Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

 

I

A democracia capitalista deve ser vista com desconfiança. É possível afirmar, com espeque em Weber(1), que a democracia capitalista é a engrenagem mais aperfeiçoada do Poder. Ou seja, esta espécie de democracia permite a dominação perfeita, vez que incute no dominado a ideologia de igualdade de participação no Poder e da liberdade social. Afinal, o mais perfeito dos Poderes é aquele que não é percebido(2).

O dominado toma como sua a ideologia do dominador(3).

Mais que isso, a democracia capitalista desconsidera a irracionalidade humana(4), irracionalidade que é amplificada e fomentada no exercício do Poder. Nesse sentido, então, a democracia capitalista é uma emboscada, uma estratégia anestésica do Poder(5). A armadilha dos ingênuos, a estratégia do Capital e o discurso dos "homens de boa vontade". Mas quem nos protege da bondade dos bons?

Em suma, a democracia capitalista pressupõe a exclusão. Como bem nos lembra Aristóteles, somente os homens livres exercem a liberdade política, participam da polis e, para isso, faz-se necessário que possuam escravos, de sorte que estes possam proporcionar àqueles a liberdade do discurso(6), o desapego à necessidade de sobrevivência. Quem tem fome não é livre. Por tudo isso, a democracia capitalista deve ser compreendida com um objeto de fé ou, para ser otimista (ou seria utilitarista?), como um valor ideal que supostamente poderia ser perseguido.

II

É neste cenário "democrático" que o princípio da publicidade no processo penal está inserido. O princípio da publicidade no processo penal de hoje não é o mesmo de ontem. Parece está ocorrendo uma revolução silenciosa. Já não se sabe mais onde termina o limite de tal princípio e onde começa o território da liberdade de imprensa. Qual é a linha que demarca a fronteira entre o princípio da publicidade no processo penal e a liberdade de acesso à informação? O que resulta dessa confusão de direitos e princípio é a impressão de que os seus limites se diluíram. Foram dragados por um novo modelo de sociedade, que se estabelece pouco a pouco, de forma rápida e silenciosa, uma sociedade pós-moderna. Neste palco, os direitos e princípios alternam seus papéis, e disso resulta um único e ideológico conceito(7), o de publicidade. Mas este conceito, ao contrário dos demais, não encontra limites.

A publicidade invade os lares, devassa a intimidade, fragiliza os valores e redesenha, através da tecnologia (tecnocracia), a sociedade fluida, heterogênea, complexa, paradoxal e consumerista atual. Mas a embalagem não adverte: "cuidado, a publicidade faz mal à saúde"! Não seria a ingenuidade a verdadeira enfermidade?(8)

Quando a redoma da segurança está rachada, a escolha torna-se a ilusão de liberdade. O homem se vê perdido, desnorteado entre dúvidas, atordoado entre aparências de escolha.

Lacaio da desconfiança, servo da conspiração. A moral, pouco a pouco, se dilui, e a ética é re-programada(9). A luz do flash queima e a sombra se torna o melhor esconderijo. O dissimulado torna-se contagioso.

Enquanto isso, os estudiosos do Direito dedicam páginas e mais páginas para precisar os limites do que venha a ser o princípio da publicidade. Uns afirmam se tratar de princípio(10). Outros, por sua vez, sustentam que se trata de uma regra. Outros, ainda, afirmam que, em verdade, se trata de uma norma(11). Quando o Direito se divorciou da Filosofia, da Sociologia, da Psicanálise...? Seria a proporcionalidade a solução para o drama provocado pela publicidade? Eis a mais nova tábua de salvação! Não seria a proporcionalidade o mais novo e badalado mito do mundo arrogante jurídico? Para onde foram as certezas?(12) Tudo de repente ficou tão inseguro.

Constata-se, então, a necessidade de um novo olhar sobre o princípio da publicidade no processo penal. Um olhar que contextualize tal princípio numa sociedade contemporânea e que o analise a partir de uma perspectiva transdisciplinar. É neste teatro de tendências que a publicidade, este ser mutante (re)configurado na sociedade pós-moderna(13), é amplificada pelas ondas do rádio, artificializada por meio dos sinais da televisão e "globalizada" através da internet, a qual insere o homem no "ciberespaço", cria a aparência de inclusão para o excluído; constrói, destrói e reconstrói o significado de (demo)cracia; adapta, versatiliza e fluidifica a dose necessária e cotidiana de anestesia.

Esta mesma publicidade que administra o torpor do Vulnerável para evitar a sua crise de abstinência incontrolável, que transforma o homem em produto descartável.

Afinal, quem não tem presente se conforma com o futuro. Eis, então, que a overdose de publi-demo-cracia transforma o consumidor-cidadão em mercadoria(14). A epidemia depressiva é sintoma dessa agonia. Quanto mais o estranho se esconde, mais o nome dele é alardeado. Nunca antes a sociedade sofreu tanto de esquizofrenia.

Mas a publicidade não é a apenas um artigo de consumo, é também uma ferramenta do poder. Mais que isso, é um valor caro ao Poder. A publicidade cria uma realidade virtual mais real do que a real. O criptográfico é colocado à venda na prateleira. E, neste cenário de angústias, a democracia capitalista entra crise, ou será que é o Poder que está em crise? Ou melhor, não será que quem agoniza é o Capital? Não seria a hegemonia da democracia capitalista a engrenagem perfeita de dominação a serviço do Capital? Quem disse que o Estado detém todo o poder? Afinal, o mais perfeito dos poderes é aquele que não é percebido. O Eu, então, encobre o Outro e este se torna um segundo Eu. Afinal, quanto maior a liberdade de escolha do Ego, maior a capacidade de domínio do Alter.

Notas:

(1) WEBER, Max. Economia e Sociedade. Volume I. Brasília: Unb, 2004, p. 76-87.
(2) FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. Reflexões sobre o Poder, a Liberdade e a Justiça. São Paulo: Atlas, 2002, p. 15.
(3) GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. passim.
(4) HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 83-92.
(5) LENIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo- Fase superior do Capitalismo. São Paulo: Centauro, 1990., p. 15-25.
(6) ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martin Claret, 2002. passim.
(7) MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 3ª edição, 1969. passim.
(8) LYOTARD, Jean-François. A Condição-Pós Moderna. Tradução: Wilmar do Valle Barbosa. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2006, p. 80.
(9) ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006. passim.
(10) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Jéferson Luiz Camargo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. passim.
(11) ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Políticos e Constitucionales, 2002. passim.
(12) PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. Tempo, caos e leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 1996, p. 7-16.
(13) BAUMAN. Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução: Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 52.
(14) BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: 70 Arte & Comunicação, 2007. passim

26/08/2009

Salo de Carvalho, parceiro de longa caminhada pela construção de um direito democrático, postou esta decisão minha. A luta continua!

http://antiblogdecriminologia.blogspot.com/2009/08/descriminalizacao-judicial.html

Autos n° 023.07.141815-9
Ação: Ação Penal - Tóxicos/Especial
Autor:Ministério Público
Denunciado:Alex Sandro da Silva

Vistos etc.
1. Trato de ação penal proposta pelo Ministério Público em face de Alex Sandro da Silva, imputando a este a conduta descrita no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, consoante denúncia de f. II-III.
2. O flagrante foi homologado (f. 42). Devidamente notificado (f.56/57), não apresentou defesa, sendo nomeado dativo. Defesa prévia (f. 81/82). Recebida a denúncia, bem assim instaurado incidente de dependência toxicológica (f. 84/85), foi aprazada audiência de instrução e julgamento. Na ocasião foi interrogado o acusado e inquirida uma testemunha da acusação. Em face do excesso de prazo configurado, concedeu-se ao acusado a liberdade provisória (f. 95/96). Laudo de dependência toxicológica (f. 116/118). Em nova audiência, colhida prova testemunhal restante, encerrando-se a instrução. Em alegações finais o Ministério Público requereu a desclassificação para o art. 28 da Lei n. 11.343/06. A defesa, por seu turno, afirmou que a droga era para uso próprio, requerendo, nos termos do art. 28, a aplicação de apenas uma advertência quanto ao uso de drogas (inciso I, art. 28, Lei 11.343/06).
É o breve relatório.
DO TRÁFICO
A Constituição da República ao organizar a estrutura do Poder Judiciário e acometer ao Ministério Público o lugar de acusador no processo penal, com a defesa no oposto, ao finalidade de garantir o contraditório, deixou o juiz no lugar de espectador, ou seja, descabe qualquer pretensão probatória na gestão da prova (MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teoria geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001). E a realização do Processo Penal acusatório é acolhida como tarefa democrática inafastável, não se confundindo com as meras formas processuais, mas sim como procedimento em contraditório (Cordero e Fazzalari), produzindo significativas alterações no modelo utilizado no Brasil (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). Neste pensar, o papel desempenhado pelo juiz e pelas partes deve ser acompanhado de 'garantias orgânicas' e 'procedimentais', consistindo na diferenciação marcante entre os modelos, conforme acentua Ferrajoli (Direito e Razão. São Paulo: RT, 2001, p. 452): "pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção. Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa." A separação das funções do juiz em relação às partes se mostra como exigida pelo 'princípio da acusação', não podendo se confundir as figuras, sob pena de violação da garantia da igualdade de partes e armas. Deve haver paridade entre defesa e acusação, violentada flagrantemente pela aceitação dessa confusão entre acusação e órgão jurisdicional. Entendida nesse sentido, a garantia da separação representa, de um lado, uma condição essencial do distanciamento do juiz em relação às partes em causa, que é a primeira das garantias orgânicas que definem a figura do juiz, e, de outro, um pressuposto do ônus da contestação e da prova atribuídos à acusação, que são as primeiras garantias procedimentais da jurisdição, conforme Ferrajoli. Acrescente-se que a acusação precisa ser 'obrigatória' no sentido de evitar ponderações discricionárias – condições subjetivas de proceder – do órgão acusador, tutelando o 'princípio da igualdade de tratamento' estatal e, ainda, que esse órgão deve ser público e dotado das mesmas garantias orgânicas do julgador. A assunção do modelo eminentemente acusatório, segundo Binder (BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos Aires, 2000, p. 7), não depende do texto constitucional – que o acolhe, em tese, no caso brasileiro, apesar de a prática o negar –, mas sim de uma 'auténtica motivación' e um 'compromiso interno y personal' em (re)construir a estrutura processual sobre alicerces democráticos, nos quais o juiz rejeita a iniciativa probatória e promove o processo entre partes (acusação e defesa). Com isto bem posto, descabe qualquer possibilidade de o juiz condenar quando o representante do Ministério Público requer a absolvição. Assim proceder seria uma fraude ao sistema acusatório.
Com efeito, o representante do Ministério Público requereu a desclassificação para a imputação prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06. Só resta discutir esta imputação e não a do art. 33, da Lei n. 11.343/06, porque o art. 385 do CPP, por evidente, não foi recepcionado. Somente quem está, ainda, premido pela mentalidade inquisitória pensa que o Estado pode condenar quando o autor da ação penal não requer.
Da análise do apurado resta evidenciado pelo depoimentos dos policiais que o acusado, de fato, foi encontrado com droga (f. 121), aliás, apreendida (f. 13), sem que apresentasse, todavia, elementos de imputação na conduta de tráfico, o próprio policial afirmou que "não viu o acusado vendendo droga" (f. 94). Remanesce, portanto, a possível imputação do art. 28 da Lei n. 11.343/06. O acusado reconhece, de seu turno, que a droga era para seu consumo próprio (f. 93), situação circundada pelo Laudo de Dependência Toxicológica (f. 116/118), bem assim o Ministério Público reconhece que não há provas sobre envolvimento do acusado com o tráfico.
Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues (Nova Lei de Drogas: Comentários à Lei n. 11.343/06. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 40-42) apontam: "Não pode ser descurado que a Constituição Federal de 1988 elegeu o Estado Democrático de Direito para ser o ser arquétipo. Dentro deste contexto, alguns valores constitucionais emergem para justificar a busca da democracia substancial, no qual os direitos, mais do que belos discursos, interferem efetivamente na realidade social. Pertinente na questão da criminalização do porte de substância entorpecente é a compreensão sobre aos valores constitucionais do respeito ao ser diferente e da igualdade, bem como do princípio constitucional da intimidade. (...) No plano concreto, a criminalização do porte de substância entorpecente dá uma bofetada no respeito ao ser diferente, invadindo a opção moral do indivíduo. Há uma nítida reprovação a quem não segue o padrão imposto. (...) Sob outro enfoque, "a simples posse de drogas para uso pessoal, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam perigo concreto para terceiros, são condutas que, situando-se na esfera individual, se inserem no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado o Estado - e, portanto o Direito - penetrar. Assim como não se pode criminalizar e punir, como, de fato, não se pune, a tentativa de suicídio e a autolesão, não se podem criminalizar e punir condutas, que menos danosas do que aquelas, podem encerrar, no máximo, um simples perigo de autolesão". (KARAN, Maria Lúcia. Revisitando a sociologia das drogas. Verso e reverso do controle penal, p. 136.) Vale salientar que integra a Constituição Federal a dignidade da pessoa humana na qualidade de valor constitucional. A criminalização de conduta exige o dano social para que não se viole o ser humano em sua integralidade de proteções. Ao usar droga (portar), a pessoa age nos estritos limites de sua intimidade constitucionalmente garantida. Permitir que a truculência do Estado Penal com todo o seu aparato invada a tranqüilidade da pessoa, se traduz na mais violenta marca da intolerância e do autoritarismo, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Ressalta-se que o bem penal jurídico tutelado no tipo do artigo 28 da lei 11.343/06 é a saúde pública. O uso afeta a saúde individual e não a pública. A incolumidade pública fica sossegada com o uso individual. Se não há lesão ao bem jurídico tutelado não há crime."
Continuo entendendo conforme decidia na 5ª Turma de Recursos, de Joinville, na Apelação Criminal n. 173, de Jaraguá do Sul, cujas razões seguem abaixo, a saber, inexiste crime porque ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06 é a 'integridade física' e não a 'incolumidade pública', diante da ausência de transcendência da conduta, e a Constituição da República (art. 3º, I e art. 5º, X), de cariz 'Liberal', declara, como Direito Fundamental, consoante a Teoria Garantista (Ferrajoli), a liberdade da vida privada, bem como a impossibilidade de penalização da auto-lesão sem efeitos a terceiros, sendo certo a necessidade da a declaração da inconstitucionalidade parcial sem redução do texto do consumo. Essa possibilidade hermenêutica - nulidade parcial sem redução do texto - aplica-se, ao meu sentir, nos casos de porte de pequenas quantidades para uso próprio (quer de adolescentes como adultos), nos quais os usuários devem ser tratados e não segregados, posto que o simples aniquilamento da liberdade pouco contribui para o efetivo enfrentamento do problema, como já demonstrado em diversos momentos históricos (Salo de Carvalho e Rosa del Omo).
Cumpre recordar, por oportuno, a discussão proposta por Rodriguez entre os modelos de Hart e Dworkin acerca dos casos difíceis (hard cases), na qual analisam o caso de um cidadão que requereu junto a Corte Suprema da Colômbia a autorização para o porte e o consumo de doses pessoais de drogas. Após discorrer-se sobre a textura aberta das normas jurídicas, sobre os problemas da discricionariedade judicial, Hart asseveraria que a inconstitucionalidade da proibição do porte e uso de quantidades pessoais de drogas encontra apoio na princípio constitucional do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana. Isto porque o Estado não deve assumir uma postura paternalista frente aos seus cidadãos, devendo garantir o direito impostergável do cidadão de conduzir sua vida conforme lhe convier, desde que não violados direitos de terceiros. "Herbert sigue sus convicciones morales y políticas liberales y sostiene que del derecho al libre desarrollo de la personalidad se sigue sin duda la inconstittucionalidad de la prohibición." De outra face, Dworkin, com seu método Hércules, fundamentado nos princípios, defende que existe a possibilidade de se apurar a resposta correta (Direito como integridade) e, na hipótese, o Juiz-Hércules deve se basear nos princípios mais valiosos do ponto de vista moral e político, consentâneos com as práticas constitucionais. Assim é que "La decisión de Hércules no es determinada poe el hecho de que la mayoria de los ciudadanos piense que se debe penaliza el porte y consumo de dosis personales de droga, porque la tarea del juez es proteger derechos, incluso - y sobre todo - contra el parecer de la mayoria. En este caso, la protección del derecho al libre desarollo de la personalidade milita em favor de la inconstitucionalidad de la prohibición."
Na mesma linha foi a decisão da Corte Suprema Argentina, a qual declarou inconstitucional a criminalização de pequenas quantidades de droga para consumo próprio, consoante explica Romina A Sckmunck da Universidade de Córdoba: "En dichos fallos se estabelece que: El art. 19 C.N impone límites a la actividad legislativa consistentes en exigir que no se prohíba una conducta que desarrolle dentro de la esfera privada entendida ésta no como la de las acciones que se realizan en la intimidad, protegidas por el art. 18 C.N, sino como aquellas que no ofendan al orden, a la moralidad pública, esto es que no prejudiquen a terceros. Las conductas del hombre que se dirijan sólo contra sí mismos, quedan fuera del ámbito de las prohibiciones. No está probado - aunque si reiteradamente afirmado dogmáticamente - que la incriminácion de simple tenencia de estupefacientes, evite consecuencias negativas concretas para el bienestar y la seguridad general. La construcción legal del art. 6 de la ley 20.771, al preveer una pena aplicable a un estado de cosas, y al castigar la mera creación de un riesgo, permite al intérprete hacer alusión simplesmente a prejuicios potencilaes y peligros abstractos y no a danõs concretos a terceros y a la comunidad (Fallos de la C.S.J.N/86:1392)." Mais adiante continua: "En los considerandos del fallo "Bazterrica" se establece que los motivos que respaldan una prohibición como la contenida en el art. 6 de la ley 20.771 pertenecen principalmente a alguno de los siguientes grupos: 1. juicios de carácter ético; 2. razones de política global de represión del narcotráfico; 3. argumentos relativos a la creación de un grave peligro social. En relación al primer grupo de argumentos se dijo: "...no podría el derecho positivo prohibir toda acción de la que pudiere predicarse que resulta moralmente ofensiva ya que no es función del Estado establecer el contenido de los modelos de excelencia ética de los individuos que lo componem, sino asegurar las pautas de una convivencia posible y racional, al cabo pacifica que brinde una igual protección a todos los miembros de una comunidad creando impedimentos para que nadie pueda imponer sus eventuales "desviaciones" morales a los demás..." Arremata: "Podríamos sostener a partir de estos argumentos que el Estado pretende imponer una moral (penando una acción privada, como es la tenencia de estupefacientes para uso personal, sin que ello se manifieste concretamente en daños a terceros al orden público en general). Sin embargo no nos seria posible afirmar esto, al menos desde el punto de vista constitucional, ya que a nuestro derecho penal positivo le há sido trazado un límite infranqueable por el art. 19 C.N em la parte que dice: "Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados". "En lugar de pretender imponer una "moral", el Estado puede reconocer un àmbito de libertado moral, posibilitando de éste modo la conducta moral de sus habitantes porque el mérito moral surge justamente cuando se tuvo la posibilidad de lo inmoral" (RADBRUCH). Por ésta forma de Estado y de derecho se decide nuestro art. 19 constitucional, eligiendo así el respeto de la dignidad humana com el reconocimiento de la autonomía moral". (ZAFFARONI/97:45)."
Assim é que a decisão invocada, proferida pela Corte Suprema Argentina, longe de autorizar o consumo ilimitado, pretende, em resgatando o primado constitucional da liberdade de autogoverno dos cidadãos da República, sem discursos totalitários (no caso da droga, americanizados), ensejar o tratamento daqueles (que quiserem e) envolvidos com drogas ao invés do simples aniquilamento. É, em suma, reconhecer a dignidade da pessoa humana, enfrentando a questão das drogas de maneira séria e democrática.
Desta forma, presente o primado material da Constituição (garantismo de Ferrajoli), bem assim da existência do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito impostergável de escolha (liberdade) do sujeito por situações que lhe digam respeito (CR, art. 3º, I e 5º, X), inalienados - por serem fundamentais, adotando-se a visão contratualista de Locke -, utilizando-se, ainda, do recurso hermenêutico da nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, cumpre declarar a inconstitucionalidade material sem redução do texto do art. 28 da Lei n. 11.343/06, na hipótese de porte e consumo de doses pessoais de droga, rejeitando-se, assim, a teoria da existência de uma difusa saúde pública!
O saudoso professor Alessandro Baratta deixou evidenciado em toda sua obra que a maior resistência à descriminilização é da opinião pública. Todavia, essa atitude repressiva desfruta do aspecto simbólico e proporciona a ilusão da segurança, bem como da resolução do conflito. A ilusão é perfeita na cultura do repasse de responsabilidades, as quais, ao final, acabam incidindo na pessoa da própria vítima/autor. É preciso, pois, ter-se a coragem de tratar o problema social das drogas como problema de saúde pública, como deixa claro Vera Malaguti Batista. Essa mudança de perspectiva é necessária para o efetivo cumprimento da promessa de dignidade da pessoa humana e do reconhecimento do adolescente como indivíduo em situação de formação. Destaco, por fim, a visão lúcida de Nilo Batista: "Pessoas que realmente sejam viciadas em drogas - lícitas ou ilícitas - precisam de ajuda, e sua família, seus amigos, sua comunidade, seus colegas, seus companheiros de trabalho, grupos especialmente capacitados de pessoas que vivenciaram o mesmo problema, e até médicos, devem-lhes essa ajuda. O Estado pode fomentar os caminhos dessa assistência, mediante programas que facilitem recursos para sua execução. O sistema penal é absolutamente incapaz de qualquer intervenção positiva sobre o viciado. A descriminalização do uso de drogas abre perspectiva para uma abordagem adulta do problema e renuncia a tomar a sentença criminal como exorcismo."
Partindo-se do Direito Penal como última ratio, ou seja, como o último recurso democrático diante da vergonhosa história das penas, brevemente indicadas como de morte, privativa de liberdade e patrimonial, excluída a primeira, desprovida de qualquer fim ou respeito ao acusado, as demais se constituem em técnicas de privação de bens, em tese, proporcional à gravidade da conduta em relação ao bem jurídico tutelado, segundo critérios estabelecidos pelo Poder Legislativo, na perspectiva de conferir caráter abstrato e igualitário do Direito Penal. Resta, pois, absolvido, pois incabível a desclassificação, por não ser crime o art. 28 da Lei n. 11.343/06, no caso específico.
Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia ofertada pelo Ministério Público (f. II-III), para o fim de absolver Alex Sandro da Silva, já qualificado, da imputação que lhe é feita, art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, com fundamento no art. 386, VII, do CPP.
Fixo a remuneração do defensor dativo em 15 URH's, devendo-se expedir certidão.
Determino que seja oficiado à autoridade policial de origem a fim de que promova a destruição da droga apreendida à fl. 13, mediante termo que deverá ser juntado aos autos, nos termos do artigo 72 da Lei n. 11.343/06.
Ainda, determino a destruição da pochete e do cachimbo apreendidos nestes autos, por seu ínfimo valor econômico, devendo ser oficiado ao Secretário do Foro para que tome as providências necessárias ao cumprimento da presente decisão.
P. R. I.
Florianópolis (SC), 24 de julho de 2009.

Alexandre Morais da Rosa - Juiz de Direito

Descriminalização - Argentina


Caros colegas
A noticia de que a Corte Suprema da Argentina reconheceu o direito de uso de droga está balançando o país. De um lado os moralistas de calça curta aliados aos nefelibatas da pureza, de outro gente que aceita respeitar a diferença e a liberdade do sujeito.
Desde que fui estudar, entrei no mestrado, em 2000, passei a decidir assim. Minhas decisões foram e continuam sendo reformadas. Cada um no seu quadrado. Espero, sinceramente, que a decisão sirva de pontuação séria da Justiça brasileira. 
Quem quiser conferir, vá ao blog do Salo de Carvalho. Imperdível.
Conferir, também 
Salve Bezerra da Silva... 

21/08/2009

Luis Alberto Warat e Caio Fernando Abreu


















Fui escrever o prefácio do novo livro de Luis Alberto Warat e me reencontrei com Caio Fernando Abreu e Pedro Juan Gutierrez. Enfim, desde encontro saiu um texto: 









Fragmentos insinuados de um eterno devir, com Warat

 

Jorge Luis Borges, no conto "A Intrusa" narra a história de dois irmãos que viviam numa paz aparente até que um deles traz uma mulher para morar na casa deles. Daí em diante o desenrolar deixa evidenciado que não havia a paz da aparência, nem o companheirismo de antes. Surge, neste lugar, quem sabe, uma objeto que coloca em conflito o desejo dos sujeitos que não conseguem, entre si, dizer o que se passa. No Simbólico há um fosso de sentido, cujo resultado somente pode se fazer ver com um ato bem Real, a saber, das intermitências de uma relação conturbada surge uma morte, a da mulher, a qual pode - imaginariamente - devolver a paz de antes. As leituras do conto de Borges são muitas. Não quero as historiar. Aproveito justamente a entrada do feminino no contexto de uma relação, ou seja, como a abertura para a diferença pode gerar, no seu cúmulo, intolerância e morte. Enfim, a intrusa precisa ser defenestrada para que se busque, novamente, a repetição de uma ausência apaziguadora. A responsabilidade do sujeito, no caso, acontece em qualquer situação.

No Direito o discurso masculino, viril, do uso e abuso da força e da coerção desfilam como protagonistas de um normativismo que acredita que todos os problemas do mundo estariam resolvidos pela subsunção perfeita entre texto normativo e mundo da vida, não se dando conta, claro, que o mundo é inapreensível, e que aceitar esta impotência é condição de possibilidade para o se abrir para a alteridade. Mas a alteridade promove o encontro com o estranho e tão próximo, a saber, a violência. A violência é constitutiva da sociedade e de alguma maneira o discurso normativista baseado numa imaginária "paz perpétua" promove intervenções violentas justamente para, do paradoxo, a promover. O exemplo palmar disto se dá no Direito Penal que, em nome da coesão social, articula toda uma rede de seleções dos mesmos, enfim, funciona como mecanismo de "legitimação" do poder.

Assim é que o livro de Luis Alberto Warat, um eterno caçador de mitos, apresenta um mosaico de fragmentos, pelo qual a re-novação se faz ver, nele e em nós. Ele influenciou toda uma geração de gente aturdida à procura de um Mestre. Este lugar de Oráculo, todavia, nunca foi por ele ocupado, embora muitos assim o quisessem. Ao não aceitar guiar, apontar o caminho, foi criticado, negado histericamente, ainda que mais tarde (quase) todos tenham se rendido à postura manifestamente ética de Luis Alberto Warat: apostar na capacidade de enunciação do sujeito! Teria sido mais fácil, especialmente para os que cultivam um "narcisismo pedante", próprio da Academia, ter fundado uma "Seita jurídica" qualquer, na sua modalidade mais contemporânea, a saber, uma "seita jurídica da salvação". Mas não. Sabia Warat que não há Salvação concedida, completude prometida, pois isto é empulhação Imaginária. E o lugar dos Salvadores sempre é o do canalh a! Restou, sempre, a aposta. A aposta no sujeito, na sua autenticidade, carnavalizando as certezas.

Neste devir de apostas, supera-se o axioma da modernidade: "Iludo-me, logo, existo", justamente por se apontar que o desejo não se articula necessariamente com a razão mas sim com um sorriso doce e que se abre para o mundo, como uma questão de pele. Diz ele que na altura de sua vida não quer mais polemizar, que está intoxicado pelo normativismo e que seu corpo não suporta mais, por este motivo, dorme, tal qual Ulisses, para não ser devorado, uma forma de atar ao mastro do navio. O seu modo de resistir aos paraísos artificiais que impedem a fruição, o salto para o desconhecido. De alguma forma Warat nos mostra uma cartografia do seu sentido, das novas formas de refletir, ler, escutar, interpretar, argumentar e sentir o Direito que precisam ser radicalmente revisitadas, com e pelo intruso feminino. Esse é o destino de uma teoria da argumentação que aspire a ser algo mais que um livro de auto-ajuda sobre o controle racional das emoções, diz ele.

No caso de Warat tenho para com ele o que Cortazar chamava de "amizade felina", no sentido de que ele sabe quem sou e eu sei quem é Warat. Não há mais o que falar! Somos amigos e Tchau, cada um para o seu lado. De qualquer forma, com a sedução que ele opera, vale a descrição de Pedro Juan Gutiérrez, o qual, por certo, descreve Warat: "Sou um sedutor. Eu sei. Assim como existem os alcoólicos irrecuperáveis, os jogadores, os viciados em cafeína, em nicotina, em maconha, os cleptomaníacos etcétera, sou um viciado em sedução. Às vezes o anjinho que tenho dentro de mim tenta me controlar e diz assim: ‘Não seja tão filho-da-puta,Luisito... Não percebe que está fazendo estas mulheres sofrerem?’. Mas aí aparece o diabinho e o contradiz: ‘Vá em frente. Elas ficam felizes assim, nem que seja só por um tempo. E você também fica feliz. Não se sinta culpado. É um vício. Sei que a sedução é um vício igu al a outro qualquer. E não existe nenhum Sedutores Anônimos. Se existisse, talvez pudessem fazer algo por mim. Se bem que não tenho tanta certeza. Seguramente eu inventaria pretextos para não comparecer a suas sessões e ter de ficar lá na caradura na frente de todo o mundo, botar a mão na Bíblia e dizer serenamente: ‘Meu nome é Luis Alberto Warat. Sou um sedutor. E faz hoje vinte e sete dias que não seduzo ninguém." Mas aí talvez surjam sempre surpresas ou eternos retornos. Por isto vale a pena a carta de Caio Fernando Abreu para Maria Adelaide Amaral: "E coisas como: o amor existe mesmo? Ou só existe o permanecer de braços abertos, como no sonho de Luísa (esse sonho podia perfeitamente ser meu, pronto(a) a receber alguém que nem sequer chega a tomar forma? E quando alguém, no plano real, toma forma, a gente imediatamente projeta toda aquela emoção presa na garganta do sonho. E fatalmente se fode, porque está tentando adequar/ajustar um arquétipo, a imagem de toda a nossa infinita carência, nossa assustadora sede, a uma realidadezinha infinitamente inferior".

A casa precisa sempre ser renovada. Warat nos convida a adotar uma postura poética e Dionísica do mundo, sempre! Vamos?

 

Alexandre Morais da Rosa.


15/08/2009

O Judiciário e a lâmpada mágica



O Judiciário e a lâmpada mágica: o gênio coloca limite, e o juiz?

 

MORAIS DA ROSA, A. 

Pós Doutor em Direito (Faculdade de Direito de Coimbra e UNISINOS). Doutor em Direito (UFPR).
Mestre em Direito (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIVALI (SC). Membro
do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (SC).



Estava à toda na vida/
O meu amor me chamou/ 
Pra ver a banda passar/ 
Cantando coisas de amor. 
Chico Buarque

RESUMO – O texto discute o “tsunami reivindicatório” com o qual o Poder Judiciário é arrostado como um sintoma do que se passa na sociedade impregnada pela racionalidade neoliberal. Para o autor, o lugar do Julgador precisa ser ocupado com responsabilidade, abstraindo-se de se apresentar como o salvador, para recolocar o Direito no lugar da Referência, como de limite para aqueles que somente querem gozar.
Palavras-chave: Judiciário. Limite. Gozo.

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Narra a lenda que o sujeito andando, sem eira nem beira, encontra uma lâmpada mágica. Ao a esfregar, um gênio aparece e lhe concede três pedidos. Com eles pode satisfazer em três momentos distintos quaisquer de seus desejos. As variações a partir daqui são muitas. O que importa marcar é que se pode pedir qualquer coisa. Sem limites. O gênio, por seu turno, não coloca barreira qualitativa aos três pedidos, somente quantitativo: três.

           Freud estabeleceu que a análise do coletivo guarda pertinência com o que acontece na singularidade e, talvez, o “tsunami reivindicatório” com o qual o Poder Judiciário é arrostado atualmente possa ser um sintoma do que se passa. Sabe-se, todavia, que o sintoma, neste contexto, procura incluir na trama o destinário, supondo que ele, ao se colocar no lugar do destinatário, possa satisfazer a pretensão, na totalidade. O gênio concede, sabiamente, três pedidos, quem sabe, para demostrar que há limites, mesmo na satisfação do desejo, para que fique um resto. Enfim, há uma Referência. Os mais apressados diriam que o gênio é reacionário e que se pode, deve, satisfazer, sem limites, tudo. Quem sabe surgiria uma passeata em nome da multiplicação dos pedidos; o milagre da multiplicação. A legitimidade deste movimento decorreria na ocupação de um lugar de vítima social das circunstâncias, sempre insatisfatórias do encontro com o Real. Por isso o argumento de Charles Melman e de Jean-Pierre Lebrun é procedente, a saber, de que gozar a qualquer preço, sem dívidas, nem responsabilidade, passa a ser o padrão de um sujeito que histericamente quer tudo e não suporta o preço de suas escolhas. Aliás, se quer tudo, de fato, não quer nada! Neste buraco da demanda, quem sabe, possa residir uma satisfação. Não é o caso, contudo, de seguir esta trilha.

          A trilha que se pretende seguir, aqui, está situada na encruzilhada da função e lugar do Poder Judiciário, mais especificicamente da escolhas singulares do sujeito Juiz. Freud indicou que a vida em sociedade impõe três sofrimentos: (i) sofrimento do próprio corpo: irá envelhecer, adoecer, embora seja difícil acreditar; (ii) sofrimento do mundo exterior: por ser impossível o dominar e o submeter a vontade própria, e (iii) sofrimento nas relações com os outros: da eterna rivalidade e contínua instabilidade pulsional decorrente da convivência humana. Perante estes obstáculos, não raro, o pedido dirigido ao gênio da lâmpada seria: (i) vida eterna; (ii) super-poderes de dominação do mundo exterior; e (iii) autoridade e poder em face dos outros, alçando a um lugar de exceção do gozo. As variações podem ser muitas, mas não apresentam nenhuma novidade à escuta psicanalítica. Esquece-se que «felicidade» não se compra como mercadoria, embora algumas possam gerar gozo, ou seja, o pedido sempre falha na sua pretensão de totalidade. Isto porque o objeto absoluto é da ordem do Imaginário, e perdido, sem nunca se ter tido acesso. O Real impede, por definição, este encontro.

          A situação de desamparo constitutivo, pois, insumo das ficções do «Contrato Social» e do «Estado de Direito», ganha no atual estádio da arte humana, um novo deslocamento da economia psíquica. Do «Contrato Social» como metáfora do estabelecimento da «Civilização» restam referências históricas, transformado em um “Contrato de Adesão” vendido pela possibilidade (manipulando a esperança) de um dia se gozar, de tudo. Enfim, mostra-se publicitariamente que a lâmpada dos pedidos mágicos existe e pode ser esfregada, pelos mais capazes, ou os que mais valorizarem economicamente. Com este estratagema a «Política», ou seja, a arte de fazer andar em fila, mantém seu poder Simbólico de fazer caminhar esperançosamente, alinhada, nesta quadra, pelo discurso economicista neoliberal.

          Neste sentido, a tese da «democratização do luxo», defendida por Gilles Lipovetsky, lida a partir da psicanálise, deixa evidenciada que a multiplicação de objetos de consumo não gera necessariamente «felicidade» justamente porque o objeto, em acréscimo, “objeto a” (Lacaniano), é incapaz de gerar a completude. De uma certa maneira a sociedade da modernidade aceitava a impossibilidade de completude, vendida, contemporaneamente, como possível. A propaganda, no caso, é enganosa, justamente porque parte de um impossível. Mas vende, e muito. Compartilhar objetos de maior luxo com mais gente, resulta, no seu excesso consumista, na impossibilidade de consumo efetivo, o qual retorna, mais e mais uma vez, na forma de violência. Ainda que de um lado haja maiores possibilidades de consumo, diante da realidade de escassez de acesso, o resultado é a barbárie do consumo realizado à força, bem assim de aparência.

          Cabe tocar, por oportuno, na «pirataria» de marcas. Comprar um tênis «puma» falsificado é o «simulacro» extremo de que o gozo escópico, por assim dizer, tarifado, prepondera sobre a «substância» tênis. O  sintoma decorrente da compra de marcas falsificadas é um simulacro banal de todos os dias. Basta ver as «bolsas femininas»… Gozar sem pagar. Nada. O preço de uma convivência que se esvai pelo jeitinho de quem quer usar enxovalhando o criador, o produtor. Disto, então, resta um sintoma de que é preciso pensar. Pouco importa qual seja o tênis desde que a marca assegure um lugar de aparente pertencimento ao novo «Contrato Social de Adesão Consumista». Exibir-se como consumidor voraz e se igualar, quem sabe, ao vizinho que sempre parece gozar mais do que o sujeito. Nesta rivalidade consumista, todos os dias novos produtos, novas imagens são apresentadas. O consumo, pois, passa a ser o critério de mensuração de uma sociedade. Entretanto, não raro o portar o objeto de desejo não aplaca a dor, esperando-se que o modelo da «nova coleção» possa, enfim, suturar a ferida que não fecha. O problema, neste caso, é que se está procurando no lugar errado. Não sem razão o histerismo do consumo, da demanda por «novidades» gere, no seu cúmulo, as novas patologias da sociedade contemporânea (stress, bulimia, fadigas, depressão, pânico, ansiedade, roubos, furtos, droga, etc…), contracenando com os desesperos de se encontrar, ainda que consumidor, desamparado. O limiar de frustração deste sujeito, paradoxalmente, encurta-se pela atuação do mercado, contra o qual é difícil resistir. Assim é que quanto mais frívolo ou fútil for o objeto, mais se diferencia e pode ser diferenciado pelos vizinhos. Esta distinção Simbólica, no contexto de uma sociedade que transpira isto, pode construir imaginariamente a adesão, isto é, o pertencimento.

          Não significa, em absoluto, o retorno ao saudosismo da diminuição da produção de bens, nem mesmo da limitação do consumo. O que se pode perceber é que a manipulação do sujeito encontra-se em patamares antes nunca vistos. O povo jogado na inautenticidade, diria Heidegger, vaga de estação em estação procurando o objeto perdido no lugar inexistente. Os fenômenos estéticos manipulam as percepções ao ponto de gerar corridas e guerras de consumo. Para além do ridículo de tais iniciativas, pode-se dizer que o lugar em que o discurso é emitido, do Mestre, assegura a «felicidade»… As necessidades de luxo estão para além das necessidades básicas, um mais além do consumo, do excesso. Não há satisfação pelo que se possui, mas sim no seu excesso quer-se mais. Pode-se dizer, também, que há uma eterna rivalização entre os sujeitos, mais ou menos acentuada. Uma delas que pode decorrer da simples autolegitimação Simbólica da alteração do lugar na estrutura social e, de outro, pela sustentação deste lugar. 

          Não se pode definir restritivamente a economia, já que se expandiu praticamente abarcando os demais campos. Estamos na idade da «Economia Excessiva», no seu cúmulo, que gera a indagação de sua função e lugar na estrutura social. Pode-se dizer que há o “consumo no Direito”, “consumo pelo Direito” e o “consumo do Direito”. No primeiro caso as relações jurídicas de consumidor x fornecedor são trabalhadas por um campo específico, o Direito do Consumidor. No segundo, há a invocação de modas, expressões, livros, Tribunais, juristas, filósofos, que se tornam produtos de compra e venda no mercado do Direito; os modismos da estação. Já no terceiro momento o próprio campo do Direito, como estrutura, é consumido pelo mercado non-stop, o qual altera a maneira de pensar das relações jurídicas, a saber, de “causa-efeito”, a qual sempre produziu a normatividade, para o da “eficiência”, bem aponta Jacinto Miranda Coutinho. Desde a leitura que fez na matriz dos neoliberais – Hayek e Friedman – e dos críticos latino-americanos – Hinkelammert, Dussel, Miranda Coutinho, Celso Ludwig, sem demoras, pode-se entender a sublimação ideológica (Zizek) que o «Princípio da Eficiência» apresenta (Júlio Marcellino Jr). Uma palavra vedete que veio, por seu vazio iluminado, seu buraco negro, dar sentido, como sempre, ao que se quer depois, desde antes. A mão  invisível (ideológica e eficiente) do mercado assumiu, no contexto do Direito, a proeminência a partir do “Princípio da Eficiência”, inserido como significante primeiro de qualquer compreensão jurídica, ao preço da democracia.

          O “Princípio da Eficiência” produziu um câmbio epistemológico do Direito, tornando a forma de pensar a partir de meios, reproduzindo vítimas. Claro. Vítimas de um modelo de Estado do Bem Estar Social não realizado e que se encontra, paradoxalmente, em desconstrução, bem mostrou Lenio Streck. Dito de outra maneira, o Estado Social é imaginariamente desfeito sem nunca ter sido, efetivamente, erguido. Trata-se da destruição de ruínas-sociais. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sustenta: “Neste quadro, não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efetividade com eficiência, principalmente por desconhecimento. Afinal, aquela reclama uma análise dos fins; esta, a eficiência, desde a base neoliberal, responde aos meios.” O discurso neoliberal promove, assim, uma “despolitização da economia”, como argumenta Zizek, abrindo espaço para que o significante da eficiência penetre no jurídico como sendo a nova onda redentora, verdadeiro “grau zero” da releitura do Direito. A economia acaba se tornando algo praticamente sagrado da Nova Ordem Mundial, sem que se possa fazer barreira pelo e no Direito. A eficiência inserida no caput do art. 37 da Constituição da República, percebida desde o ponto de vista de Pareto, Coase ou Posner, passa a ser o critério pelo qual as decisões judiciais devem, necessariamente, submeter-se. Não se trata mais de num cotejo entre campos – econômico e jurídico –, mas na prevalência irrestrita da relação custo-benefício. Este discurso maniqueísta entre eficientes de um lado e ineficientes de outro, seduz aos incautos de sempre, os quais olham, mas não conseguem perceber o que se passa. A questão é mostrar que este é um falso dilema, adubado ideologicamente. Sair deste quadro de idéias colonizadas é tarefa individual. Faz-se ao preço de um estudo sério que não se apazigua com frases feitas emitidas pelo «senso comum teórico» (Warat) e vendidas no mercado de decisões judiciais. Até porque as utopias da Modernidade não geram mais o engajamento de justificar uma razão para morrer. Um fim último, perdido no mercado das pequenas satisfações diárias, efêmeras, cuja satisfação não implica na prometida completude. Mesmo neste quadro parece que o engajamento se perde na preguiça e ausência de esperança de um projeto coletivo. O individualismo hedonista, nesta quadra, no campo do Direito Estético de hoje, esbarra no muro das lamentações, sempre. Os sonhos coletivos viraram souvernirs, mercadorias. Camisetas de “Che Guevara” sem que saiba quem é, ou o que representou... são um exemplo limítrofe. 

          Viver assim, sem dívida, consumindo o que aparecer e/ou se puder, implica numa aceleração incompatível da pretensão de consumo e, por consequência, o aumento das coisas que não se pode consumir. O argumento de Gilles Lipovetsky, contudo, é falacioso. Embora haja mais consumo, também existem muitos mais objetos de consumo que ficam fora de acesso. O sujeito acaba premido pelas impossibilidades de consumo que o compelem, todavia, a querer. O quê? O que se apresentar brilhante, leve, capaz de completar. A ilusão acelerada e fugaz que se desfaz no primeiro uso. O sujeito nestes casos de vitimização se reduz a objeto da volúpia alheia, como se toda a relação com o outro estivesse à mercê deste, sem qualquer responsabilidade do sujeito. Uma lógica de vitimização praticamente universal – se o outro fuma, olha feio, usa camisa do flamengo, é rude – há um sentimento de dano, cuja reparação é reivindicada perante o Poder Judiciário.

          Cabe, assim, sublinhar, mais uma vez, que a política é a arte de fazer andar em fila. Esta política acelerada, no mundo neoliberal, precisa, diante de seu lugar estratégico na estrutura, uma vez que pode impor sob o manto da legitimidade, normas que auxiliem o desiderato do modelo mal-dito, transversal, do Direito. Embora o Direito seja estratégico e a planificação execrada, o neoliberalismo o aceita como lugar-tenente, ou seja, de segurança para os “ruídos” que o mercado pode ocasionar pela proeminência de um dos participantes, via mecanismos corretores.

        Anote-se que a morte de gente não é uma perda para o sistema neoliberal. É um custo do sistema que sabe e, arrisca-se dizer, exige que morra gente. A cultura da pobreza resta superada pela esperança que bate à porta. Gente que fica a vida inteira sendo honesta e espera ganhar na loteria. De outro lado, gente que desistiu da esperança de um ato de sorte e decide, por si, com os meios que possui, ir adiante e gozar, nem que seja por poucos minutos de um objeto que o torne diferente. Basta ver que os adolescentes frequentadores das Varas da Infância e Juventude deste país ocupam um lugar de privilégio na “comunidade”. Este é o diferencial. A morte em vida já é vivida. O consumo como objetivo único é sempre manco, e exige uma escalada de consumo. O lançamento comprado ontem, hoje pode ficar obsoleto. Então, retorna; “fashion victms”, diz Gilles Lipovetsky. Não se pode, diante de um mundo de escassez, acreditar que na construção da felicidade coletiva se faça pela “democratização do consumo”, e que o Sistema se encarrega de diminuir os custos desta orda consumista. O mercado universal, por básico, favorece aos dominadores. Os Estados que organizavam, de certa forma, a estutura das trocas, estão submetidos a uma nova ordem que impõe reformas estruturais em nome de um receituário internacional. Os interesses que manipulam as premissas do Estado Democrático de Direito restam soterradas pelo discurso que pretende o extravasamento dos limites sociais. O Estado é eunuco, incapaz de fazer barreira. O campo econômico mundializado, sem fronteiras, uniformiza das normas jurídicas, sob a promessa de desenvolvimento econômico e engajamento ao projeto de globalização, ao preço de uma Democracia não consolidada. A propaganda proporcionada pelo discurso neoliberal é um carro alegórico sem substância, e por sua simplicação, seduz os incautos de sempre.

          Antônio Gramsci apontava que a cooptação dos intelectuais pelo Sistema Hegemônico era uma das estratégias de poder utilizadas para domesticar o pensamento crítico. A atualidade desta categoria se manifesta na maneira pela qual as decisões no âmbito do Poder Judiciário brasileiro se apresentam. O cotejo do Documento n. 319 do BID, dentre outros, aliada a frase de Milton Friedman de que o Direito é por demais importante para ficar nas mãos dos juristas bem demonstra a pretensão de pensamento único, neoliberal, em que o Poder Judiciário é metaforizado como uma grande orquestra, a saber, por um maestro (STF), com músicos espalhados nos diversos “instrumentos”. Estes músicos, ainda que arregimentados, eventualmente, por sua capacidade técnica e de reflexão, ficam obrigados a tocar conforme indicado pelo maestro, sob pena de exclusão da “Orquestra Única”. Não há outra para concorrer; ela é a portadora da palavra. Diz a Verdade. Ainda que alguns dos músicos pretendam uma nota acima ou abaixo da imposta, não lhe dão ouvidos, porque o diálogo é prejudicado. O slogan é: «toque como queremos ou se retire».

          A “Orquestra do Poder Judiciário” ainda está em formação e a harmonia pretendida pelos donos do poder foi se adaptando por Emendas Constitucionais e Reformas Legislativas. Primeiro, claro, a eficiência de um Poder paquidérmico, caro, oneroso, devolvido a sua grande missão: garantir os contratos sinalagmáticos e a propriedade privada, em nome da confiabilidade no mercado internacional. Para tanto foram articuladas diversas técnicas: 1) Súmula vinculante: por ela o maestro (STF) pode impor, definitivamente, a nota a ser tocada, retificando a interpretação mediante uma simples Reclamação, podendo, ainda, responsabilizar o músico juiz faltoso; 2) Reformas legislativas: a) abreviação do julgamento, mesmo sem o estabelecimento do contraditório (julgamento liminar pelo mérito); b) Relativização da coisa julgada inconstitucional (Paolo Otero iniciou e ganhou fôlego no Brasil), a qual quebra a ficção que se estabelece o Processo: a coisa julgada, bem sabia Carnelutti. A ficção maior do sistema, a coisa julgada, virou, também, flexível. Há uma reflexibilidade no ar...

          Isto contracena com o quadro de músicos formados por, pelo menos, dois corpos distintos. O primeiro de velhos músicos, na sua maioria acostumados e desde antes cooptados pelo poder, sem qualquer capacidade crítica e que ocupam os Tribunais da Orquestra. Talvez os ceguinhos, catedráulicos e nefelibatas de Lyra Filho Os segundos, mais jovens, bem demonstrou Werneck Vianna, fruto de uma pedagogia bancária, sem fundamentação filosófica adequada, alienados da dimensão humana e capazes de decorar milhões de regras jurídicas, somente. Logo, incapazes, na sua maioria, de qualquer resistência constitucional, até porque formados na cultura manualesca. A ambos grupos, todavia, deve-se acrescentar dois fatores: a) a sedução cooptativa de um subsídio polpudo. Imaginariamente aderidos, vestem ou querem vestir Prada por possuírem, agora, condições financeiras de consumir. Curtir a vida de maneira diversa dos magistrados antes da Constituição/88. Viajam, compram, estão preocupados no consumo de objetos da moda. Aceitam facilmente o convite para adentrar neste mercado de ilusões, ficando, pois, na mais ampla ausência de gravidade, bem demonstou Melman. Os novos carros do mercado, a nova coleção da estação ocupa o lugar de algo que pode importar, “consumindo”, por assim dizer, o sujeito do enunciado. Torna-se uma «maria-vai-com-as-outras». Pensar e resisitr, para que? Quer gozar!; b) Este poder gozar, entretanto, cobra um preço. A alienação da capacidade crítica e uma obscena pretensão de eficiência, de quantidade, com pouca velocidade, na melhor linha da Análise Econômica do Direito. O sintoma desta situação se mostra na aderência sem precedentes aos precedentes, numa americanização da Orquestra Judiciária brasileira. De outro lado, também, cabe apontar que o poder gozar exige, cada vez mais, números de julgamentos, apresentações sinfônicas perfeitas, conforme a partitura, sem limites. Bulimina, stress, baixa auto-estima, adições, dentre outras saídas, quando não budismo, induísmo, seitas, Juízes de Jesus, acabam se instalando.

          Resistir a isto, todavia, é ir contra a maré das “Almas Belas” (Zizek), gente que em nome do politicamente correto, da aceitação das ditas evoluções sociais, aceita deferir toda-e-qualquer-pretensão para não posar de reacionário, totalitário e conservador. Aceita o jogo do mercado, fabricando e vendendo decisões conforme a moda da estação. Trata-se de um lugar, um lugar que deveria ser de Referência, um lugar cuja função é a de dizer, muitas vezes, Não. Entretanto, para que se possa dizer Não é preciso se autorizar responsável, embora o discurso do senso comum o desresponsabilize, coisa que a grande maioria não se sente, por se estar eclipsado em nome do direito do conforto. Este lugar do Julgador precisa ser ocupado com responsabilidade pelo que se passa na sociedade. Não para se tornar o salvador, o novo Messias, e sim para recolocar o Direito no lugar da Referência, de limite, como até o gênio faz! 

          Neste contexto, parece complicado em falar em Não desde dentro da Orquestra. Porque assim proceder pode significar a impossibilidade de gozar na esfera privada, mediante a mais-valia cobrada na esfera pública, tornando-se quase que o músico solista, incapaz de fazer frente à Orquestra Total. Fundar uma Orquestra paralela é impossível. Talvez, então, seja necessário sabotar a Orquestra Principal, assumindo-se, com Gramsci, a condição de intelectual orgânico. A questão é saber se se pode pedir dos magistrados brasileiros isto? Aí o Poder Judiciário, na sua maioria, efetivamente, diz Não. Respondem, em coro: «Mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero é gozar». Mas é preciso complementar a música: «Não vai dar, não vai dar não, vocês vão ver a grande confusão»… É só esperar, quem sabe, que o Gênio sirva de inspiração.

http://www.direitoepsicanalise.ufpr.br/revista/index.php?option=com_content&view=article&id=64:v1n1a02&catid=32:ultimonumeroartigos&Itemid=65

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